jeudi 5 janvier 2012

CHRONIQUE D'UN ÉTÉ - CRÔNICA DE UM VERÃO


Em Paris, 1960, o sociólogo e antropólogo Edgar Morin propôs a Jean Rouch, antropólogo e cineasta, uma experiência de interrogação cinematográfica (em suas palavras), um filme etnográfico, porém, sobre parisienses e cujo mote principal seria a pergunta “como você vive?”. Nisso resultou Crônica de um Verão, documentário que escapa a possibilidades redutoras de denominação por trafegar em diversos lugares, tendo como princípio o termo já um tanto mal interpretado de cinéma-vérité (cinema-verdade), uma tentativa de eliminação da ficção e aproximação da vida, segundo palavras do próprio Morin. 

Para Morin, Rouch era um “cineasta-mergulhador”, pela sua notável capacidade de imergir nos universos retratados, de maneira a diminuir consideravelmente a sensação de diferença entre objeto filmado e aquele que o captura. Rouch parecia parte do ambiente, a exemplo de suas filmagens em Os Mestres Loucos, no qual parece um dos componentes entorpecentes e entorpecidos do ritual. Na década de 60, o cinema vivia uma fase de diversas mudanças e facilitadores técnicos, o que certamente contribuiu para acentuar a característica de Rouch em Crônica de um Verão. As câmeras, nesse momento, já estavam mais leves, e os gravadores Nagra permitiam a captação de som direto. 

A forma escolhida por Morin e Rouch para tratar o cinema-verdade foi a de discutir a questão da verdade, para além de simplesmente tentar capturá-la. Essa discussão se apresenta na primeira sequência do filme, na qual vemos Morin, Rouch e uma de suas personagens centrais, Marceline. Ali, as regras do jogo já são expostas, numa cena em que os próprios autores do filme conversam sobre o que viria a seguir, acerca da tão discutida questão da relação do ser filmado com a câmera e o tipo de verdade que pode surgir dali.


Sabemos que nossa experiência no mundo já é definida pela autorrepresentação à sociedade, pela imagem que desejamos transmitir ao outro. No caso da presença de uma câmera, esta experiência é certamente elevada, pois estão concentradas aí diversas outras questões, como bem comentou Eduardo Coutinho em entrevista ao Canal Brasil, falando do caos vivido pelo entrevistado entre o que ele é, o que ele quer ser e de como ele pensa que os outros o veem.  

Crônica de um Verão não somente vai a fundo nessas questões, como elas são expostas verbalmente pelos autores e, ao final, colocadas em discussão para os personagens, após eles terem visto fragmentos de suas participações antes da montagem final. O filme contém diversas e complexas camadas, que vão de cenas com câmera no tripé e conversas à mesa, câmera na mão acompanhando os personagens na rua, no trabalho, entrevistas individuais, câmera escondida, encontros entre os próprios personagens, conjunção de momentos em que os diretores estão presentes às discussões e microfilmes nos quais a atuação dos personagens é levada ao ápice, como na sequência de Ângelo em sua rotina diária ou de Marilú com seu namorado (Jacques Rivette) aprontando para sair. 

Para tal, trabalharam no filme quatro cinegrafistas, dentre eles Raoul Coutard, cinegrafista de Acossado e de outros diversos filmes de Godard. Pensar um documentário com tons de Nouvelle Vague parece surreal, mas Crônica de um Verão contém esta e diversas outras características, que o elevam a uma condição de intrincada estrutura. Primeiramente, Rouch – segundo fontes, em discordância com Morin – optou por cenas mais ágeis, em vez de entrevistas longas que buscassem silêncios expressivos ou entrega dos personagens pelo recurso da duração. A decupagem do filme passa longe da decupagem transparente do cinema-direto almejado por Ruspoli (que pregava o mínimo de intervenção), com diversos cortes, diálogos nos quais vemos closes dos personagens e uma montagem que muitas vezes sugere a presença de mais de uma câmera.

Diferentemente de documentários que priorizam o tempo real, Crônica de um Verão segue a vertente do tempo cinematográfico, parece documentar o próprio fazer-cinema na presença de personagens que de uma maneira ou de outra também contribuem para a mis-èn-scene no filme. E é justamente na inserção desses instantes de interpretação declarada que Rouch e Morin demonstram encontrar espaço para essa tal verdade que buscam. Os personagens se vêem, em diversos momentos, em cenas aparentemente ensaiadas, nas quais a câmera os acompanha, seja em sua rotina, na rua, no trabalho. Em outros instantes, participam de jantares e almoços nos quais os técnicos também compartilham as discussões, e as câmeras só são ligadas depois de um determinado tempo, possibilitando familiaridade com o aparato diferente daquela obtida nas cenas ensaiadas, pois, desta vez, os personagens já se encontram à vontade e se entregam às cenas com muito mais abertura. Isso parece gerar um choque entre a premeditação do ato e a naturalidade diante de uma câmera com a qual o personagem estaria habituado.


Segundo o crítico Carlos Alberto Mattos, a interferência contínua de Morin, Rouch e dos cinegrafistas no filme acaba por gerar uma verdade puramente cinematográfica, diferente dessa ideia lúdica e utópica de uma verdade absoluta do filme, que sabemos impossível, inclusive na vida fora das câmeras. A verdade de Crônica de um Verão é ainda mais complexa, parte de uma instância cinematográfica que permite ainda a construção da intimidade diante da câmera, como acontece no primeiro encontro de Ângelo e Landry.

A presença da câmera é também motivo de constrangimento e de denúncia de um período desanimador para os trabalhadores franceses, como na sequência em que Nadine e Marceline passeiam pelas ruas de Paris munidas de um microfone e perguntam aos transeuntes se eles são felizes – aqueles que dão resposta positiva param e aceitam a interferência calmamente, ao contrário dos que aparentemente não se sentem felizes, que prontamente rejeitam a presença das duas e do microfone. O filme tem esse frescor “nouvellevaguiano” de algo constantemente em movimento, ainda que nas cenas internas. As questões são na maioria das vezes pontuadas no caminhar dos personagens ou na agilidade da decupagem nos planos e contraplanos durante as conversas.
De questões políticas (emprego, situação no Congo, Guerra da Argélia, Holocausto), artísticas, pessoais, o filme jamais se perde na tentativa central, que é a de discutir a questão da verdade no cinema. Após inserções que variam entre a melancolia e o frugal, chegamos ao final (metafórico, certamente, visto que esta é uma questão em permanente discussão no universo cinematográfico) do filme, ao corte para a luz da projeção se apagando e o questionamento de Rouch do que eles acharam de se ver na tela. Temos ali presentes todos os personagens, que são convidados a analisar sua participação e a dos outros no filme – de volta à questão da verdade.
Para uma das crianças, não é possível mentir diante das câmeras, enquanto que, para os adultos, a apreensão da verdade esteve numa confusão entre aqueles que se entregaram demais e os que não estavam sob fortes emoções. O filme apresenta, portanto, uma questão ainda mais intensa, que é a do personagem diante da visão dos diretores, à mercê da montagem de uma sequência protagonizada por eles próprios. A reação geral é negativa, o que resultou no descontentamento de Rouch (como aponta Morin em um texto sobre a experiência), mas que, novamente tendo em vista a experiência cinematográfica, é de uma riqueza impressionante. Nos momentos em que o cinema é cinema, independente da intenção da verdade, é que se pode ver a intensidade de sua expressão artística.

A intensidade dessa expressão grita na última sequência, quando Morin e Rouch caminham e conversam sobre suas impressões do filme e da projeção discutida anteriormente pelos personagens. A exposição das estratégias, aberta ao espectador desde o início da projeção, é levada ao ápice, com os autores ponderando os pontos fortes e decepcionantes da experiência. Para Morin, o filme os leva de volta à vida. Quiseram fazer um filme de amor e fizeram um filme de reação, não necessariamente simpática. Para Rouch, eis aí a dificuldade de se comunicar alguma coisa. Para o cinema, certamente uma oportunidade.  

Filmes Citados:
Crônica de um Verão (Chronique d´um été, 1961/ Edgar Morin e Jean Rouch)
Os Mestres Loucos (Le Maîtres Fous, 1955/ Jean Rouch)

(por Ursula Rösele)